quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Noites Perdidas [Conto - Parte I]

Tudo o que conheci foi esta aldeia, foram estas pedras...
Sempre me senti sozinho, mesmo quando rodeado de pessoas e sempre questionei esta minha visão do mundo.
Tudo o que vi e aprendi se deve a este lugar, desde a minha tenra infância que é cenário dos meus sonhos e brincadeiras de criança.
Houve uma altura na minha vida em que tudo isso mudou.
Por volta dos meus dezassete anos de idade, tomei uma nova consciência e de repente passei a vaguear os mistérios da noite.
Comecei a sentir o fascínio pelo que estava além da minha vida pacata e escondida.
Sentia os cheiros da noite e a vontade de abandonar o conforto do meu lar, partir pelas ruas e pelos campos nocturnos acompanhando os morcegos esvoaçantes...
Saía às escondidas pela escuridão em busca da companhia do silêncio dos mortos.
Sozinho comecei a sair todas as noites de lua nova, as mais escuras e negras de todas, devido há ausência do brilho da lua, para me refugiar no cemitério.
Cheirava os aromas nocturnos e sentia a calma que reina nesse refúgio adormecido.
Sentia-me bem nesse lugar, sentia-me acompanhado, algo que nunca sentira antes, sentia-me eu mesmo, em paz.
Descobri-me finalmente pela primeira vez, era eu que estava ali! A minha identidade...
As noites e as estações foram passando, as minhas partidas nocturnas já eram um ritual, a noite chamava por mim, e eu chorava com a sua beleza, a calma e a companhia do silêncio.
Era na escuridão que sentia o conforto e a protecção que procurava, era nesse mundo que eu me refugiava e queria viver para sempre.
Foi então, que comecei a viver para a noite e passava os dias fechado, ora a dormir, ora a ler e escrever as minhas fantasias.
Tudo o resto, era uma obrigação que tentava despachar a todo o custo, porque o meu momento de glória, era quando todos se iam deitar, quando os outros se perdiam nos sonhos, eu vivia o meu sonho acordado na negrura da noite, na ausência do sol e na presença da lua escondida, eu não a via, mas ela estava presente e ajudava a esconder-me sobre o seu manto de escuridão.
Era a minha cúmplice nos meus rituais de sangue, nos meus segredos mais íntimos.
Como tenho saudades de ser criança, a doçura da infância, a ignorância, o esquecimento, tudo tão precioso e abundante. Agora escondo-me do mundo, fujo da realidade, a inocência perdeu-se nos desejos, no sangue derramado, na minha visão que cobiça os outros.
Esta minha solidão não durou para sempre, as minhas obrigações de estudante levaram-me a um outro mundo, um lugar desconhecido de pessoas novas.
E houve então, uma criatura que me chamou especial atenção, uma criatura das trevas, tal como eu.
Conseguia-a sentir, como se a conhecesse, como se fosse uma parte de mim.
Ela me fascinou, os seus olhos reluziam na minha mente e ecoavam nos meus sonhos.
Com a maior das bençãos, mais tarde a conheci, ficámos logo amigos, muito próximos, foi tudo muito natural e espontaneo.
Sentia uma grande atração por ela que tentava esconder cada vez que ficavamos no pátio a conversar ou quando saíamos à tarde para o jardim depois das aulas para passear e tirar fotografias, umas vezes aos pássaros que ali pairavam, aos idosos
que adormeciam nos banquinhos de madeira pintados ou a nós, rindo das nossas figuras e das nossas poses desajeitadas.
Ainda não tinha tido o tempo necessário para parar um pouco e pensar no que me estava a acontecer, nesta mudança da minha vida.
Não tinha tido tempo para pensar, agora andava sempre muito ocupado com trabalhos escolares, as aulas, tudo...
Mesmo sem dar por mim, andava feliz, andava empenhado num futuro que nunca tinha imaginado, mas não por muito tempo.
Eu sempre precisei de tempo para me isolar, de me afastar de todos e do mundo, eu era muito instrospectivo.
Talvez demasiado para um rapaz da minha idade, mal completara os meus dezanove anos de idade nessa altura.
Houve uma noite que marcou a minha vida, uma noite um pouco diferente daquelas em que vagueava sozinho pela escuridão em busca de mim próprio, desta vez eu procurava a realização dos meus desejos.
Um dia, após as aulas, eu e a Joanne fomos passear, apanhar um pouco de ar e de natureza, eu já a algum tempo que andava impaciente para lhe partilhar alguns dos meus segredos, os meus desejos e o meu mundo nocturno, e contava com ela para as minhas saídas ao cemitério.
Eu sabia que ela iria ficar surpreendida, mas ao mesmo tempo fascinada com a ideia, ela era muito parecida comigo, nós perdiamo-nos durante tardes inteiras a conversar sobre temas do nosso agrado, ela adorava histórias e fantasia, tal como eu, isso agradava-me imenso, e fazia aproximar-me ainda mais dela e ela também gostava da minha companhia, na verdade éramos amigos muito próximos. Já não eramos apenas colegas de turma e de trabalho.
Nesse mesmo dia, eu decidi partilhar-lhe alguma da minha escrita, alguma da minha poesia e desabafos, já não tinha medo algum de me mostrar, sentia-a como parte de mim e ela também já não conseguia passar sem a minha companhia, sem as nossas brincadeiras no jardim sem os nossos encontros descontraídos e animados, das nossas tardes depois das aulas.
Nesse dia, disse impaciente a Joanne:
-Hoje tenho de te levar a um lugar especial...
-Onde? - perguntou surpresa.
-Isso agora é segredo, vens ou não vens? - disse eu em tom de brincadeira.
-Sim, vou, mas agora? - perguntou ela admirada.
-Não... Agora não, à noite Joanne, tenho um sítio para te mostrar, acho que vais gostar tanto como eu.
-Hum, parece-me bem, (risos) então fica combinado, tou para ver se não é mais uma das tuas brincadeiras tolas!
-Não, falo a sério Joanne, acho que vais gostar desta surpresa.
Acenei eu com um sorriso para ela, meio tonto só de olhar nos olhos dela.
Era como se ela fizesse parte daquele cenário, daquelas árvores baloiçantes e daquela luz dourada que preenchia-lhe o rosto na perfeição e clareava os seus olhos amêndoados cor de mel.
Na minha mente, no meu pensamento, ecoavam dúvidas, se deveria dar a conhecer a Joanne o meu mundo, aquilo que eu até então tinha reservado apenas para mim...
Eu sabia que ela ia gostar, estava apenas com medo de perder a minha identidade ao partilhar com ela os meus hábitos antigos e até então escondidos.
Na hora combinada, lá apareceu ela a dois quarteirões de minha casa, não era propriamente o que uma pessoa chamaria de casa, mas para mim mais acolhedor não existia, era a minha casa, o meu lar, o meu refúgio.
Era um simples moinho com um andar de cima e uma janela circular. Eu adorava lá viver e a renda era bem mais barata que uma casa habitual.
Lá, estava protegido de todas as distrações, menos do meu pensamento. Podia estudar à vontade, sentir-me bem e inspirar-me quando precisava atender à minha necessidade de escrever as minhas fantasias.
-Vamos embora? - perguntei confiante e animado!
-Vamos, lá! - afirmou a Joanne também animada e divertida.
-Onde vamos afinal? - perguntou ela, desta vez com a esperança de obter alguma resposta...
-Bem, minha querida amiga, em breve saberás...
Passámos pelo jardim, parecia estranho não era o jardim luminoso das nossas tardes, estava silêncioso, abalado pelo frio da noite, para mim aquele caminho era tão familiar e usual que nem dei por atravessá-lo. Quando finalmente reparei, estávamos já a chegar ao lugar misterioso.
-Mas, estamos a ir em direcção ao cemitério! - exclamou Joanne espantada.
-Estamos? Olha, nem reparei. - disse eu, em tom de brincadeira.
-Como é que sabias que eu sonhava um dia vir a este lugar? - disse Joanne estarrecida.
-Eu não sabia, nunca me disseste. - afirmei eu.
-Pois, é verdade, eu nunca tive coragem de aqui vir, mas sempre tive uma imensa curiosidade. - confessou.
-Então deixa-me mostrar-te uma coisa! - os meus olhos brilhavam de felicidade e ao mesmo tempo de ansiedade.
Estávamos já a saltar o pequeno muro que separava a calçada deste meu refúgio de tantas noites perdidas.
-Isto é lindo Paul, tão sossegado. - murmurou Joanne estasiada.
-Vamos para aquela campa ali, é a minha preferida! - afirmei prontamente no meio daquela escuridão toda.
Como não podia deixar de ser era lua nova e a noite estava escura como breu.
-Não acredito! - olhou para mim Joanne com ar de espanto.
-Já aqui estiveste?
Com um sorriso disfarçado mas de modo confiante afirmei que sim.
Podia ver o fascínio dela a olhar em volta, a tentar descortinar sobre aquela escuridão e quietude todos os promenores daquele lugar.
O céu estava coberto pelas estrelas, que brilhavam sem medo, nós sentámo-nos por cima da campa. Era a campa de uma jovem rapariga, a minha companhia nas minhas idas solitárias ao cemitério. Ela chamou-me à atenção desde o primeiro dia que ali fui, era bela de cabelos lisos encachoados nas pontas, tinha um olhar misterioso, triste e inocente.
Questionava-me todas as noites porque teria morrido tão jovem, tão bela como noite e estava tão sozinha como eu, mas não nessa noite. Nessa noite tinha a Joanne,
parecia-me uma criança numa loja de doces, a olhar para todo o lado fascinada.
Nesse instante, eu percebi que sempre tivera razão, a Joanne era como eu, ela chorava com a beleza da noite, ela sentia a companhia dos mortos e o seu silêncio protector.
De repente, avisto um vulto branco, Joanne fica assustada e depois olha para mim, como que a tentar perceber o que se estava a passar.
Silenciosamente explico-lhe:
-Não te preocupes Joanne, são as corujas das torres. Costumam vir caçar nesta zona, gostam de voar silenciosamente por estes cipestres altivos, são mesmo bonitas não são?
-São, e silenciosas também, assustei-me porque não sabia ao certo o que era. - confessou ainda com a respiração acelerada.
-É verdade, são inesperadas e silenciosas como a morte, é essa a sua beleza, são criaturas como nós Joanne, também elas vivem para as trevas da noite, tal como eu tenho vivido estes anos todos, é esta minha paixão que me mantém vivo todos os dias.
-Tens a paixão pelas corujas? - perguntou Joanne sem perceber ao certo o que lhe tentava dizer.
-Não... Sim, também Joanne, falava antes da minha paixão pela noite, pela escuridão...
-Hmm, entendo... - exclamou ela pensativa.
-Vamos então tornar este lugar só nosso, especial... Vai ser o nosso segredo!
Naquele preciso momento, já vagueava perdido por meus pensamentos, por minhas memórias, mais que saborear o instante presente. Mas o que ela me disse, despertou-me do meu sonho hipnotisado, o que ela tinha acabado de dizer, tinha ecoado na minha mente e acelerado o meu coração.
Nosso Joanne? - exclamei em tom de dúvida.
Sim Paul... Vamos tornar este lugar nosso. - disse ela, sorrindo de voz doce e olhos reluzentes.
Os seus cabelos ajeitavam-se com o vento como se eu estivesse a acariciar-lhe o rosto. Era pálido de faces rosadas, os lábios seduziam-me.
Eu acenei que sim, demos as mãos enquanto sorríamos. Sorríamos talvez porque estavamos felizes ou pelo facto de a nossa amizade ter-se tornado em algo mais forte
algo mais intenso, mais verdadeiro do que aquilo que podíamos ter alguma vez imaginado e naquele momento senti Joanne olhar para mim de uma forma diferente, parecia falar com o seu jeito, as suas expressões, o seu sorriso doce. Joanne era uma rapariga muito bonita, elegante e delicada, era impossível resistir ao seu jeito de ser quase inocente e desprotegido. Eu sentia que tinha de a proteger a todo o custo, que precisava de ser o seu anjo protector só para continuar a ver
aquele sorriso que valia pela minha felicidade. E eu sei que Joanne sentia-se protegida a meu lado, nós passávamos imenso tempo juntos nem que fosse
apenas deitados um ao lado um do outro a rir das nossas histórias, da nossa infância.
A noite ia avançando, e a neblina começava a cobrir o terreno, em poucos momentos a atmosfera estava inundada por um véu, só eu e Joanne, o resto desaparecia
lentamente sobre o nevoeiro que pairava no ar e se adensava parecendo vir das entranhas da terra.
Deitámo-nos sobre a campa, sentindo o horizonte, vendo as árvores cónicas precipitadas sobre o céu rodeando as estrelas e furando o véu da noite.
Joanne virou a sua face rosada para mim sorrindo, apercebi-me naquele momento do quanto gostava dela, do quanto era ela importante para mim.
Já não havia vento, o ar estava ameno e denso coberto pelo nevoeiro e Joanne tomou-me de surpresa, acariciando-me o rosto, olhando fixamente para mim...
Sorrio prontamente para ela e fico simplesmente a admirar a sua beleza, a sua doçura, a efemeridade desse momento, sentindo cada toque, cada olhar como sendo os últimos da minha vida. Nada em mim via outro dia como garantido, cada momento era especial e único e Joanne era uma criatura singular, era a minha Joanne.
Retribuí-lhe as carícias, ambos sorrimos. As lágrimas deslizavam sobre a suavidade do seu rosto e eu de seguida já estava a verter as minhas também.
Chorávamos a beleza daquele momento, ambos sentíamos o que estava a acontecer, algo único em nossas vidas.
-Paul... - proclama Joanne em voz doce.
- Gosto muito de ti sabias? - esboçando um sorriso disfarçado de olhos a brilhar.
Senti que nenhuma palavra seria suficiente para lhe mostrar aquilo que sentia e após um instante em que a boca parecia não conseguir proferir nenhuma palavra, acaricei o cabelo de Joanne, depois o rosto e aproximando os meus lábios dos dela, acariciei também a sua boca levemente, sentindo um enorme pulsar de sensações.
Aqueles segundos, pareciam arrastar-se pelo tempo, e Joanne retribuiu-me o beijo com mais carícias, com mais toques.
Como os seus lábios era delicados, eram doces, tímidos mas ao mesmo tempo vorazes, aquele momento tinha-me excitado e Joanne respirava sobre mim.

[CONTINUA...]

Bruno Pacheco

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Carpe Noctum

Vagueio as noites em busca de algo, do desconhecido, da solidão, do conforto da escuridão.
Procuro a companhia dos mortos, o frio dos cemitérios.
Caminho sem rumo, caminho para me refugiar da luz que me ofusca.
Deito-me sobre o chão alcançando o horizonte e as estrelas da noite, seguindo o voo das aves nocturnas, retribuindo os uivos das criaturas da noite.
Viajo pela imaginação obscura da minha própria mente, do meu sofrimento eterno,
da minha paixão pela morte e também pela vida.
Contemplo o passear do tempo, o brilhar da lua, o esvair das nuvens sobre a terra...
Sinto os fantasmas da minha existência, o atordoar da chuva que brota do céu.
E no entanto sonhos são sonhos, são flores que caiem secas, são lágrimas perdidas.
Esta é a fúria que infecta o meu coração.
Perco-me na noite, e triste deslizo sobre as campas caladas e sobre o meu destino escondido no presente, ainda por vir.
A morte, essa é certa e acompanha todo o meu ser, todos os meus sentidos, nesta minha presença despercebida, pelos encantos da noite.